domingo, 25 de outubro de 2009

Respeitar o cinema clássico, para entender o cinema hoje.

“Em tempos de arte descartável, modismos e sucessos fugazes não é surpresa que o cinema clássico seja deixado de lado, mesmo sendo inesgotável fonte de inspiração para os diretores de hoje, que bebem de sua água e não lhe prestam o justo tributo.”

É inegável que a cultura pop está enraizada em nossas vidas há muitos anos, os que nasceram a partir da década de 90 do lado oeste do Meridiano de Greenwich viveram cada minuto de sua existência imersos no oceano pop, mesmo que não se dêem conta disso. A premissa básica do pop é a efemeridade: a pipoca (em Inglês popcorn, iguaria que dá nome à tendência) voa apenas uma fração de segundo, quando explode, apenas para cair em seguida junto a centenas de outras para nunca mais voar novamente. Assim é a música pop, a bebida pop e a comida pop: fazem um extraordinário sucesso para, pouco tempo depois, serem descartadas e substituídas por outras, a fim de alimentar um público sempre sedento por novidades.
Essa supervalorização do presente em detrimento de tudo de bom que já foi feito, entre outros males, é adotada amplamente por novos críticos que desconhecem ou desprezam o cinema clássico, fonte de inspiração para tudo o que é produzido hoje. Despreparados, apontam como inovações elementos criados na década de 50 por Franklin J. Schaffner, como roteiros originais releituras pobres dos grandes épicos de William Wyler, como fotografia soberba meras repetições do que Orson Welles fez em 1941 com Cidadão Kane.
Basta digitar a palavra “crítica” mais o nome de um filme qualquer no Google para ser bombardeado por um sem-número de blogs e sites pessoais de pretensos críticos que sequer sabem quem foi Stanley Kubrick. Preocupante é saber que muitos são levados por essas idéias fátuas e improfícuas, acreditando piamente que Eu Sou a Lenda é a adaptação definitiva do livro homônimo de Richard Matheson, sem saber da existência de Last Man on Earth de Ubaldo Ragona, primorosa adaptação datada de 1964, ou The Omega Man (1971) de Boris Sagal, com Charlton Heston no papel do Dr. Robert Neville. Não se trata de saber qual é a melhor das adaptações, e sim do leitor ter a informação correta (mercadoria valiosíssima na Internet) de que tais versões existem. É no mínimo irresponsável que alguém que se rotule crítico não informe tais coisas ao seu leitor, já que está negligenciando dados que são de sua obrigação pesquisar e divulgar. Se não tiver ânimo ou talento para cumprir tal compromisso, é melhor que escreva sobre Justin Timberlake ou Amy Winehouse antes que a pipoca volte ao fundo da panela.

A importância de se conhecer os clássicos vai além de se entender sua influência no cinema contemporâneo. Os filmes, assim como as obras literárias, registram com imparcialidade – ainda que essa na maioria dos casos seja involuntária – os valores e os hábitos da geração de sua época. Assistindo A Marca da Maldade de Orson Welles entende-se que já naquele tempo havia a rivalidade entre americanos e mexicanos e a corrupção policial, mas o mais interessante é observar como os punks contratados pelo detetive corrupto Hank Quinlan (Welles) drogam Susan Vargas (Janet Leigh): eles fumam maconha e assopram na cara da pobrezinha! Seis delinqüentes puxando seus baseados e afogando a mocinha indefesa na nuvem alucinógena. O espectador de hoje, acostumado às atrocidades de Jogos Mortais e O Albergue, certamente estranharia (por que não enfiam logo o cigarro na boca da coitada ou metem-lhe uma injeção de heroína?). O caso é que na década de 50 o público não estava preparado para violência explícita nas telas, muito menos tortura, daí a solução bem-comportada de Welles. Saltando para os anos 80, Indiana Jones e o Templo da Perdição é quase um hino ao machismo boçal daquela década. A mocinha Willie Scott (Kate Capshaw) talvez tenha sido uma das primeiras mulheres-samambaia da história do cinema: sua sensualidade, sempre ressaltada por trajes mínimos (para o padrão da época), é sua única virtude. Fora isso, é imbecilizada, fragilizada e humilhada durante toda a exibição da fita. É arrastada de um lado para o outro, jogada na sujeira, quase obrigada a comer uma sopa de olhos e enfiada no meio de toda sorte de bichos asquerosos, numa clara prévia dos torture porns. Havia naquele tempo certa tolerância com idéias machistas e racistas, naturalmente, esse filme não passaria despercebido hoje sem sofrer uma crítica feroz.

É necessário prestar tributo ao cinema clássico por todas as grandes idéias que são transformadas e recicladas até hoje. Não se trata de saudosismo: reinventar e atualizar o que já foi feito é algo bem-vindo e necessário, mas não seria justo esquecer dos pioneiros das grandes sacadas do cinema. Quando se fala de inteligência artificial e do embate homem versus máquina, por exemplo, logo vêm à cabeça filmes como O Exterminador do Futuro, Eu, Robô e Matrix. Entretanto, os cinéfilos mais atentos se lembrarão de quatro nomes: Roy, Pris, Zhora e Leon, respectivamente Rutger Hauer, Daryl Hanna (sim, ela já era muito perigosa antes de Kill Bill), Joanna Cassidy e Brion James: tratam-se dos replicantes renegados de Blade Runner (1982) que, ao contrário dos seus primos do século XXI que insistem em destruir a humanidade por motivos vagos e elusivos, desejam apenas continuar vivos.

Voltando aos anos 70, não se pode deixar de citar Ash (Iam Holm), o insensível andróide de Alien, que por pouco não mata Ripley (Sigourney Weaver) de maneira muito criativa: enfiando-lhe uma revista enrolada goela abaixo. Sua motivação: garantir que o espécime alien chegaria à Terra. Na década anterior, em 2001: Uma Odisséia no Espaço, o mais memorável antagonista cibernético: HAL 9000 (dublado pelo lacônico Douglas Rain), o computador da nave S.S. Discovery que, tomado por convicções pessoais, decide exterminar toda a tripulação para garantir o sucesso da missão. Apesar de ser uma entidade ameaçadora e de personalidade complexa, HAL é representado no filme apenas por uma lâmpada vermelha que, ainda assim, mete mais medo que as garras afiadas e armas futurísticas de Megatron.

Todos os grandes avanços tecnológicos do cinema começaram com os clássicos, desde a revolução do cinema falado até os efeitos especiais. Difícil superar o assombro causado por inovações como os walkers imperiais de O Império Contra-Ataca, que levaram a animação em stop motion a um novo patamar, com modelos realísticos, fundos complexos e ação simultânea de vários elementos no cenário – sem mencionar a criação das armas elegantes para tempos mais civilizados, ou apenas sabres de luz para os que não tiveram a oportunidade de conhecer o verdadeiro Ben Obi-Wan Kenobi (Alec Guinness) no Episódio IV. Um ano depois, em 1978, pudemos ver o insuperável Christopher Reeve maravilhar-nos com as mais realísticas cenas de vôo já vistas em Superman. Até hoje é possível assistir a esse clássico sem a sensação outdate tão comum quando se vê filmes antigos: a produção é caprichadíssima e os efeitos especiais continuam convincentes, mais do que muitos filmes novos baseados em efeitos de computação gráfica de quinta categoria.

Desconhecer os grandes clássicos, para os verdadeiros amantes do cinema, significa apreciar a obra de arte pela metade. Filmes extraordinários como O Lutador de Darren Aronofsky serão ainda mais admirados se o espectador conhecer o fantástico Touro Indomável (1980) de Martin Scorsese. O filme clássico não anula ou desmerece o filme novo, pelo contrário, dá a bagagem necessária para se estabelecer uma comparação saudável, confrontando os valores e os temas discutidos nesta e naquela época, destacando as particularidades que cada ator conferiu a seu personagem. Robert De Niro e Mickey Rourke interpretam lutadores de boxe, mas Jake La Motta e Randy 'The Ram' Robinson são bem diferentes, enxergar as peculiaridades de cada um desses memoráveis lutadores faz parte da beleza que é apreciar cinema.

Por fim, conhecer os filmes clássicos e entender sua importância não tem a ver com desprezar os filmes novos. Dizer que “não se fazem filmes bons como antigamente” é besteira, sempre houve poucos filmes bons e muitos filmes ruins em todas as épocas e sempre será assim, como em todas as manifestações artísticas. Deve-se, sim, fugir da armadilha do pop, não deixar que os velhos e novos clássicos, que certamente virão, sejam desprezados como se nunca tivessem existido, como se tudo o que está sendo produzido nos estúdios tivesse surgido magicamente, do nada. Aceitar tal coisa é como conceber que se dê à luz um homem de 40 anos, bem-sucedido, formado em engenharia de petróleo e com um carro importado na garagem.

2 comentários:

  1. Gostei deste post, me recordou horas de aulas que tive com o Abreu, meu professor de roteiro em cinema.
    Não deixem o POP te levar!

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  2. BLad runner é BLAD runner VLW por lembrar-nos

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