domingo, 26 de dezembro de 2010

A Raposa, o Lobo, o Ornitorrinco, e o roubo do botão de Alerta - Capítulo II

CRÔNICAS DO CPTURBO

A Raposa, o Lobo, o Ornitorrinco, e o roubo do botão de Alerta

Uma fábula em um prelúdio, quatro capítulos e um epílogo

-----------------------------------------------

:::: CAPÍTULO II: Manutenção código 665H

O processador-sol surgia no horizonte, em seus núcleos de infinitos terahertz processavam-se todas as informações do cosmos, as equações eram resolvidas à potência de todos os algarismos do PI, números complexos eram criados e destruídos em fenômenos tão rápidos que mal se poderia dizer que existiram. A colossal estrela despejava sua energia sobre a Grande Floresta nos primeiros momentos da manhã, os raios, penetrando através da mata, desenhavam os contornos das folhas das árvores no chão, na ampla clareira do distrito 8.1. Restavam poucos usuários ali, a maioria já dormia em suas ocas digitais, construídas com barro e pastas vazias do Explorer, que serviam como telhado. Algumas taperas tinham belos adornos de barras de tarefa e ícones de atalho, que espelhavam aqueles primeiros raios da aurora. Um ou outro membro ainda encontrava tempo para postar uma última piada ou imagem cômica antes de dormir, na esperança de encontrar outros insones para comentar no tópico. Num canto da clareira, em torno de Sherlock, os Guardiões e a Ninfa ainda tentavam assimilar a trágica notícia trazida pelo antigo coordenador. Sentado sobre a grande cauda achatada, o Ornitorrinco fitou o gorila branco com seus pequeninos olhos:

- Sherlock, isso é um mal-entendido. – Com a Caneta do supervisor, o Ornitorrinco desenhou um retângulo luminoso no chão. Com um toque da Caneta, a grama se dissipou, liquidificando-se em um cristal de cor esverdeada, que logo se conectou aos servidores de segurança de Cepetelândia, na tela, imagens das câmeras de segurança. O Ornitorrinco passou as imagens com a nadadeira até chegar na câmera que supervisionava o Santuário no alto da Montanha Proibida. - Veja, velho amigo, o Botão de Alerta continua no mesmo lugar, intocado. A desativação do alerta deve ser uma falha do IPB3, algo do gênero.

- Vamos até o Santuário, você precisa ver com seus próprios olhos. Sherlock se levantou, apagou o cachimbo e começou a se mover para a mata.

O Ornitorrinco olhou em volta e deu por falta do Vampiro. O sol o espantara. Disse, então, para o Lupino:

- Lobo, vá à floresta, encontre o Homem de Costas e façam uma varredura nos tópicos abertos desde ontem. Deixem mensagens de advertência nos tópicos impróprios e mantenham sigilo absoluto sobre a desativação do alerta.

Enquanto o Lobo corria para a floresta, 0 Ornitorrinco virou-se para a Ninfa e disse:

- Cachinhos, precisamos da Raposa. Você conhece o procedimento.

A Ninfa acenou positivamente com a cabeça e deu dois passos para trás. Cruzou suas vultosas penas e inclinou-se para frente, apontando as delicadas mãos para os pés. Disse algumas palavras mágicas em voz baixa e, na altura de seus tornozelos, surgiu um círculo de energia que girava em fagulhas douradas. Conforme ela levantava as mãos e os braços, o círculo mágico subia por seu corpo esguio, mudando seu avatar enquanto passava. Ao fim, havia se metamorfoseado na Mulher Código de Barras. Não foi preciso mais de dois segundos para que a Raposa caísse do céu como um foguete, abrindo um buraco no chão e causando grande estrondo com o impacto, os olhos arregalados, a língua caída de lado, a expressão parva:

- É ela! É ela! – gritava. Cachinhos quebrou o encanto e voou alguns metros acima, apavorada. O vulpino, magoado, choramingou:

- Ah, Orni, por que fazes isso comigo?

- Você atende mais rápido assim do que te enviando MP. – ele voltou-se para a mata. - Vamos para a Montanha Proibida, preciso de você e de seus olhos que tudo veem.

Os animais encantados embrenharam-se na floresta, a Ninfa os seguia pelo ar. O Ornitorrinco e a Raposa disparavam velozmente por entre pedras, arbustos e troncos caídos, o gorila branco ia mais devagar, dependurando-se nos galhos das árvores. No caminho, passaram pela grandiosa floresta várzea do Setor 8.5, que estava em seu período de cheia. As águas que inundavam o igapó traziam o conteúdo dinâmico das notícias e artigos, que eram absorvidos pelas árvores e colhidos em forma de fruto e seiva. Inúmeros usuários repousavam em seus galhos, recostados, cipós com terminais USB ligados aos seus tablets carregavam-nos com o conteúdo jornalístico mais recente. O som das águas digitais que passavam lentamente entre as árvores era um convite à leitura e reflexão. O Ornitorrinco mergulhou e nadou velozmente em meio à torrente de conteúdo. Numa parte mais rasa, onde a água ficara represada em meio às raízes retorcidas das árvores, ele avistou um tópico de notícia duvidosa, sem a fonte e mal formatado. Deveria haver dezenas daqueles, e nenhum fora alertado. Não demoraria até que os usuários notassem que a desordem se espalhava.

Logo após saírem da área inundada, os Guardiões alcançaram a trilha para a Montanha Proibida, a Ninfa os acompanhava no céu. Subiram velozmente pelo estreito caminho de pedras que serpenteava monte acima, margeado por vários arbustos de pequenos aplicativos. Era fim de tarde quando alcançaram o Santuário no alto da montanha, uma plataforma de pedra circular com símbolos místicos talhados em baixo relevo por toda superfície, contornada em semicírculo por pilastras de rochas cilíndricas sobrepostas, parcialmente cobertas por musgo e trepadeiras. Sobre a plataforma, flutuava um enorme porto de exclamação de mais de quatro metros de altura, que emanava tênue luz dourada. O gigantesco totem planava tranquilamente, girando devagar ao redor do próprio eixo.

- Ei-lo no lugar, Sherlock! – Disse o Ornitorrinco, apontando o grande ídolo. A Raposa se adiantou, sentou-se sobre as patas traseiras e fitou atentamente o gigantesco ponto de exclamação. Seus poderosos olhos adquiriram a cor branca e emitiam luz como lâmpada fluorescente. Após alguns segundos, ficou sobre as quatro patas e virou-se para o Ornitorrinco, dizendo:

- Ele tem razão, Orni. O Botão de Alerta não está aqui.

- Veja por si mesmo – disse Sherlock, oferecendo ao Ornitorrinco a velha Lupa do Coordenador, artefato mágico da época em que era guardião da Grande Floresta. – Veja a verdade através da lente.

O Ornitorrinco tomou a lupa em sua nadadeira e olhou para o totem. Através do cristal mágico, que dá ao seu portador poderes semelhantes aos da Raposa, ele pôde ver o código-fonte do monumento. O Grande Botão de Alerta deveria conter as complexas instruções programadas pelos Moderadores e Conselheiros de Cepetelândia, mas através da lente ele viu que se tratava de um fake: no totem falso havia apenas a versão beta do Windows 98SE.

- Como alguém pôde roubar o Botão de Alerta? Ele tem quase dois andares de altura e pesa toneladas! – Disse a Raposa, olhando ao redor. Sherlock acendeu seu cachimbo curvo e deu algumas baforadas, respondendo:

- Elementar, minha cara Raposa. O ladrão usou o WinRAR para compactar o botão. Não é serviço de amador, quem fez isso conhece a Grande Floresta e as brechas no sistema de segurança.

- Um banido! – Disse o Ornitorrinco em tom grave enquanto olhava para o falso totem flutuante.

Os usuários banidos de Cepetelândia tinham suas almas enviadas ao Limbo, uma dimensão paralela de onde não poderiam se conectar aos servidores de conteúdo. Entretanto, muitos banidos mantinham contas falsas, vestes que podiam usar para se esgueirar em segredo pelas paragens da Grande Cidade. Como ratos, andavam pelos cantos, sempre cautelosos, sem poder desfrutar plenamente do conteúdo ou compartilhar informação livremente sob o risco de serem identificados e novamente enviados ao Limbo. Seres infelizes, que não souberam conviver harmonicamente quando tiveram oportunidade e agora moram nas sombras, vivendo apenas pela metade.

- Um banido numa conta fake não seria tão ousado. – disse a Raposa. A Ninfa, que voava ao redor da grande exclamação, pousou ao lado do vulpino e disse:

- A menos que não tenha nada a perder. Alguém que esteja tão cheio de ódio que se arriscou a esse ponto para promover uma vingança contra nós. Sem o Botão de Alerta a anarquia se estabelecerá em Cepetelândia, tudo poderá ruir! – A Ninfa falava em voz alta, os olhos lacrimejantes, as faces rubras.

- Precisamos ganhar tempo – disse o Ornitorrinco, sacando seu smartphone. Com a unha curva que saída da nadadeira foi passando os contatos até aparecer a foto de Geroge Michael. – Vou solicitar a instauração daManutenção Código 665H.

- 665H? - Perguntou a Ninfa, sem entender. O Ornitorrinco pôs o smartphone no viva-voz e, quando a contraparte atendeu, pode-se ouvir em alto e bom som a versão dance de Freedom.

- Conselheiro Michaels, o senhor já deve estar a par da situação. Peço que seja anunciada no Portal a Manutenção Código 665H, justificando o não-funcionamento da função de Alerta.

- Ok, Ornitorrinco. É bom que você e sua equipe resolvam essa bagunça.

- O que é a Manutenção Código 665H? Insistiu Cachinhos, ansiosa para entender o que estava acontecendo.

- Um engodo – respondeu Sherlock. – Uma estratégia usada para manter os usuários sob controle e evitar o pânico.

- Não existe nenhuma Manutenção Código 665H – continuou a Raposa. – Mas isso nos dará tempo antes que os membros problemáticos descubram que perdemos o controle.

O Ornitorrinco deu as últimas instruções ao Conselheiro Michaels e encerrou, dizendo-lhe o quanto gostava de Careless Whispers. Digitou uma MP para os outros guardiões e ocultou o smartphone em meio aos pêlos.

- Você vai aos moderadores? – Disse o grande símio, fumando seu cachimbo.

- Sim. Vou consultar o Oráculo e descobrir a identidade do invasor. Vamos ao Templo da Convergência.

- Você sabe que não posso acompanhá-lo. Não mais – disse o gorila, sem mudar sua expressão. – Somente os Guardiões podem entrar no templo.

- Eu sei. Preciso de você aqui, caro amigo. Zele, mais uma vez, pela Grande Floresta em nossa ausência. Os membros o conhecem e o respeitam, você não precisará do Alerta para que o ouçam.

- Muito bem, farei o possível – o gorila branco pôs a mão no ombro do Ornitorrinco. – Tome cuidado, você sabe que os Moderadores são imprevisíveis. Uma frase mal-colocada e te mandarão varrer as salas de cinema da Seção 2.

O Ornitorrinco tocou a pata de Sherlock em sinal de amizade e acenou com a cabeça. Então, ele, a Raposa e a Ninfa dos Cachinhos Dourados desceram a montanha, deixando para trás o corajoso companheiro. A noite voltava a cair sobre a Seção 8 e os seres encantados percorriam a floresta velozes como raios. Seguiam para o norte, para o limite de seu condado. De repente, um gigantesco e largo facho de luz violeta cruzou os céus de uma ponta a outra da grande cidade, como um enorme banner estendido no firmamento. Surgiram, então, as palavras:

MANUTENÇÃO CÓDIGO 665H
O sistema de alerta está temporariamente desativado
para manutenção. Agradecemos sua compreensão e
pedimos desculpas pelo transtorno.

Era o anúncio do Portal. A esperança era que conseguissem solucionar o caso antes que os membros percebessem que o Botão de Alerta, na verdade, fora roubado. Os guardiões e a Ninfa atravessaram toda a floresta até chegar à extensa savana ao norte, que delimitava o território da Seção 8. Lá os estavam esperando o Lobo, o Homem de Costas e o Vampiro que Treme. Corria uma brisa suave que balançava levemente a vegetação gramínea. O anúncio do Portal iluminava os seis seres mágicos que se reuniam naquela planície erma, apenas o som do vento na relva interferia no silêncio que reinava. O Ornitorrinco então narrou tudo o que sucedera na Montanha Proibida e seu plano de ir até o Templo da Convergência para descobrir o autor do furto. Porém, mal o Ornitorrinco terminou de falar, o Lobo saltou para trás e uivou, os olhos fixos no Vampiro. Todos perceberam que algo estava errado e se afastaram um pouco.

- O que foi? – Disse o Vampiro, sem entender o porquê do espanto nos rostos dos companheiros.

- Seu... seu pulso! – Gritou a Ninfa, horrorizada.

O Vampiro levantou a mão e um calafrio percorreu sua espinha. A tremedeira tomou conta do seu corpo. No seu antebraço surgiu uma argola de energia vermelha, que era a marca do alerta negativo. A Raposa deu dois passos firmes na direção do amigo e o fitou com seus olhos mágicos:

- Você recebeu 30% de alerta... Estão usando o Botão de Alerta contra nós!

Um silêncio de tensão dominou os heróis. Não havia dúvida: aquele que roubou o botão de alerta buscava vingança contra os Guardiões e, quiçá, contra toda Cepetelândia. Não se tratava apenas de semear a desordem, mas de destruir a cidade e seus protetores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário