domingo, 26 de dezembro de 2010

A Raposa, o Lobo, o Ornitorrinco, e o roubo do botão de Alerta - Capítulo III

CRÔNICAS DO CPTURBO

A Raposa, o Lobo, o Ornitorrinco, e o roubo do botão de Alerta

Uma fábula em um prelúdio, quatro capítulos e um epílogo

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:::: CAPÍTULO III: O Caçador dos Céus

O Templo da Convergência era um dos lugares mais importantes de Cepetelândia. Localizado no coração da cidade perdida, era também o lar dos seres abissais, os titãs, os poderosos moderadores e conselheiros do reino. Somente os guardiões dos condados tinham acesso ao suntuoso templo, que era o centro da mítica rede neural da cidade.

Lá, os destemidos guardiões da Grande Floresta esperavam encontrar a resposta para o terrível mistério: quem poderia ter roubado o Botão de Alerta? Quem teria a audácia de usá-lo para alertar os próprios Guardiões? Um banido, com certeza! Era preciso identificar o ladrão através dos rastros deixados pelo servidor, vestígios de seu IP, marcas de sua incursão silenciosa e covarde na sagrada floresta da Seção 8. Somente o Oráculo poderia depurar os dados e chegar ao criminoso.

Os guardiões continuaram seu caminho para o norte, correndo com ainda mais urgência pela grande savana; afinal, se o criminoso usara o Botão de Alerta contra o Vampiro que Treme, não tardaria a atacar os demais. Deslocando-se com sua velocidade mágica pela vegetação baixa da planície escura, logo chegaram ao grandioso Rio Warez, que margeava a Seção 8 e se estendia até a outra extremidade de Cepetelândia. Havia um velho cais, cuja entrada era uma pequena cancela de madeira velha. Na trave superior da cancela dependurava-se um lampião que iluminava debilmente as desgastadas tábuas que se entendiam rio adentro em um velho atracadouro. O anúncio no portal pairava nos céus, fazendo refletir nas águas do rio sua luz violeta numa mistura de refrações e cores que se deslocava pelas águas calmas. A partir dali, os heróis perdiam seus poderes, não estavam mais protegidos pelas forças místicas oriundas de sua amada floresta. Deveriam prosseguir como membros comuns na longa viagem até o templo sagrado.

- Precisamos de um barco – disse o Ornitorrinco.

- Eu sei quem pode nos ajudar – disse o Homem de Costas, sempre tímido e receoso de fitar os companheiros nos olhos. Ele usava um grande sobretudo preto, amarrado por uma fita de couro na altura da cintura. Suas canelas nuas revelavam que ele usava, na verdade, somente aquele sobretudo. – Deveríamos pedir ajuda ao velho pirata!

- Sim! – Disse o Lobo – assim chegaremos no templo ao amanhecer.

O Ornitorrinco digitou rapidamente em seu smartphone uma MP para o sisudo coordenador da gigantesca Seção 2, o Vale de Cristal, localizado na região oeste da cidade perdida. A Ninfa consolava o Vampiro segurando sua mão. A argola vermelha brilhava no pulso do ser noturno, marcando-o com a qualificação negativa. O Lobo e a Raposa adiantaram-se sobre o atracadouro, o vento frio da noite balançava seus pêlos dorsais.

- Lá vem ele! – Gritaram.

Na curva do rio podia-se ver a embarcação surgindo, aproximando-se em grande velocidade. A gigantesca nau, a Caravela de Ailton, era uma das maravilhas de Cepetelândia, um grandioso vaso de guerra que defendia as fronteiras da cidade perdida. Das aberturas no costado projetavam-se ameaçadores canhões, capazes de rechaçar qualquer ameaça. As velas estendidas nos mastros eram feitas de pura energia e brilhavam na penumbra em nuances azuladas; por toda a extensão do casco e do convés estouravam descargas elétricas, algumas atingindo a água, outras lampejando entre os mastros e a amurada, uma visão infernal capaz de intimidar o mais intrépido inimigo. A imensa nau aproximou-se ladeando o cais, algumas centelhas atingiam as tábuas da ponte, fazendo com que os guardiões recuassem alguns passos. Pôde-se ouvir o estrépito da grande âncora caindo no mar no lado oposto do navio. Na amurada, logo surgiu o velho pirata, um dos poderosos coordenadores do Vale de Cristal. Ele olhou para os seres encantados e soltou uma longa gargalhada, que terminou em uma tosse seca. Tomou um bom gole de rum e gritou:

- Rá! Então os bichinhos da floresta querem uma carona para o Templo da Convergência! E o que significa aquilo? – Gritou, apontando a garrafa de rum para o banner no céu.

- Você sabe o que significa, Ailton! – Respondeu o Ornitorrinco, impaciente – não há tempo a perder! Veja! – Ele apontou a nadadeira para o Vampiro, que mostrou a pulseira vermelha.

- Então os rumores são verdade! – Disse o velho capitão, baixando o tom de voz – como isso aconteceu?

- Conversaremos a bordo – respondeu o Ornitorrinco, ainda mais impaciente. – Precisamos chegar ao Templo da Convergência antes que mais alguém seja alertado! Temos que...

- Rá! – Interrompeu o pirata – agora o pato está com pressa! Então venham, camarões, subam a bordo da poderosa Caravela de Ailton, o Impiedoso! – Ele abriu uma portinhola na amurada e chutou uma escada de cordas, que desenrolou até o cais.

O Homem de Costas e o Vampiro que Treme subiram rapidamente pela escada, o Lobo e a Raposa, sem poder usar seu salto mágico, foram levados pelo ar por Cachinhos, que ainda podia voar mesmo fora da floresta. O Ornitorrinco segurou firmemente a escada com seu bico e foi içado até o convés. A âncora foi recolhida e a nau afastou-se do cais, movendo-se para o meio do vasto rio de conteúdo. As descargas elétricas intensificaram-se, explosões luminosas espelhavam nas águas e revelavam em flashes a escultura da proa, uma musa em madeira de seios nus conhecida em Cepetelândia como A Garota do Muro. A toda força a caravela partiu, a sotavento, para o coração da grande cidade.

No convés da gigantesca embarcação havia notebooks por todos os lados, todos conectados via wi-fi na grande rede. O Lobo deitou-se diante de um e destilou seu ódio pelos tópicos incompletos que encontrava em toda a Seção 8. No lado esquerdo da tela, o botão de alerta continuava na cor cinza, desativado. O jeito era dizer aos membros problemáticos que, após o fim da “Manutenção Código 665H”, seus tópicos seriam revisados e as punições aplicadas, o Vampiro o auxiliava na tarefa. Era certo, porém, que aquele embuste não duraria muito tempo. Alheia a tudo, a Raposa metera-se dentro de um barril com seu iPad. Pelo trepidar do tonel, era certo que estava conferindo as novas fotos e vídeos da Mulher Código de Barras, era prudente, portanto, manter distância. Encostado no mastro, sempre de costas para todos, o Homem de Costas acessava no laptop sua conta bancária, fazendo transferências para cobrir as inúmeras dívidas com pensões alimentícias. A Ninfa, por sua vez, estava trancada em sua cabine, puxando os cabelos com uma prancha elétrica na vã tentativa de esticar os cachos mágicos. O Ornitorrinco estava ao lado do capitão, que operava a roda do leme com tranquilidade, comandando a nau em velocidade máxima. Ele perguntou ao pirata:

- No Vale de Cristal, já sentiram os efeitos do roubo?

- Rá! – Gritou o pirata, sem tirar os olhos do horizonte – um sujeito já postou Calígula três vezes, estamos excluindo os tópicos manualmente. Os membros já estão questionando por que o meliante ainda não foi negativado.

O Ornitorrinco também voltou seu olhar para o horizonte, em silêncio. A sagrada missão de guardar o Botão de Alerta foi dada aos seres encantados da Seção 8, era de sua responsabilidade recuperá-lo. De repente, ouviu-se um grito. Grito de mulher. A Ninfa! Todos correram para o convés inferior, menos o pirata, que não podia largar o timão, e a Raposa: entretida que estava, não ouviu o grito e continuou dentro do barril. O Vampiro chutou a porta e puderam ver a Ninfa em lágrimas, sentada na beira da cama, os áureos cabelos ainda cacheados:

- Vejam – choramingou ela, exibindo a delicada perna. – Eu vou ser banida!

Em seu belo tornozelo, luzia uma argola de energia vermelha. Recebera, assim como o Vampiro, 30% de alerta. Compadecido, o enorme Lobo saltou sobre a cama e achegou-se a sua paixão proibida. A fada abraçou-o, vertendo lágrimas douradas que caiam sobre os pêlos do animal místico.

- Você não será banida, Cachinhos – Acudiu o Homem de Costas, sempre com o olhar baixo e expressão tímida – O patife não fará mais do que isso. Ninguém pode aplicar mais de 30% de alerta, nem mesmo os Supervisores!

- A menos que decifre o código-fonte do Botão de Alerta – murmurou o Ornitorrinco, do lado de fora da cabine, num tom em que só o Vampiro pôde ouvir. – Precisamos nos apressar.

Eram as últimas horas da madrugada, a nau singrava velozmente pelo volumoso Rio Warez, na urgência de chegar o quanto antes à capital de Cepetelândia. Aquele fora o segundo ataque à equipe da Seção 8, o gatuno certamente foi banido por atividades ilícitas na Grande Floresta e agora buscava vingança. Era preciso detê-lo antes que dominasse as complexas instruções da poderosa exclamação, pois então seus poderes não teriam limite.

Os céus da cidade perdida anunciavam o alvorecer quando a Caravela de Ailton ancorou no porto da Seção 0, a capital de Cepetelândia. Na iminência dos primeiros raios de sol, meteram o Vampiro dentro do barril, para que pudesse ser transportado em segurança até o sagrado templo sem virar cinzas. Ao perceber que era o mesmo barril usado como ninho de amor pela Raposa, o Vampiro protestou bastante, mas não havia remédio: o processador-sol já lançava seus primeiros raios sobre a cidade, aprisionando-o no asqueroso tonel. Cachinhos permaneceu na caravela, pois somente os guardiões dos condados podiam adentrar a Seção 0, além dos poderosos Moderadores e Conselheiros. O velho pirata apertou a nadadeira do Ornitorrinco e disse:

- Boa sorte, pato! Eu cuidarei da fadinha maluca – ele balançou a garrafa de rum – com uma bela festa ao estilo dos piratas! – Ele gargalhou e, mais uma vez, acabou numa tosse seca, amenizada com um novo gole da bebida.

O Ornitorrinco agradeceu, meio temeroso pela segurança da Ninfa, e tomou o caminho para o grande templo junto de seus companheiros. Ele ia à frente com o Homem de Costas enquanto o Lobo e a Raposa vinham logo atrás, equilibrando em seus dorsos o barril com o Vampiro, que não parava de reclamar.

O caminho do porto até o Templo da Convergência era curto, uma estrada calçada com blocos de pedra que subia até o alto de uma colina, ladeada por vegetação rasteira e nenhuma outra construção. O grande rio, os extensos prados e o imponente santuário sobre o outeiro compunham uma vista fantástica que era usada como wallpaper por vários cepetelenses apaixonados por sua pátria.

Logo, os heróis estavam diante do Templo da Convergência, uma construção ancestral composta por uma grande abóbada e oito torres altíssimas ao redor, tudo construído em blocos de informação que remetiam às primeiras instruções de DOS. Nas fissuras entre os blocos, pequenas linhas luminosas de dados corriam ininterruptamente, fazendo o papel de argamassa da grandiosa construção. A entrada principal, um grande portal em ogiva, estava sempre aberta àqueles que desejassem se arriscar a perturbar o repouso dos seres arcanos. Resolutos, os guardiões da Grande Floresta adentraram o templo.

O salão principal era um grande espaço circular de uns vinte metros de diâmetro. Nas paredes, próximos ao início da abóbada, dezenas de vitrais retratavam cenas épicas das guerras que formaram a grande cidade perdida de Cepetelândia, séculos atrás. Ao redor da nave, oito portas, cada qual dando acesso a uma das torres que rodeavam aquela enorme construção circular. Naquele salão havia uma grande pedra ritual no formato de uma mesa, cunhada com inscrições indecifráveis, que ficava em frente à entrada. Sentado a essa mesa, num grande trono, um ser misterioso, oculto por um manto com capuz escrevia com uma pena sobre uma tela LED touchscreen, que ficava embutida na pedra ritual. A luz verde-esmeralda que emanava de dentro do capuz e das mangas do manto não deixavam dúvida: tratava-se de um Moderador, o arcano Oráculo do Templo da Convergência.

- Aproximem-se – disse o ancião, sem desviar os olhos ou parar de escrever. Os guardiões se aproximaram, o Lobo rolou o barril até eles.

- Ornitorrinco, você deseja saber a identidade de um invasor.

- Sim, senhor – disse o Ornitorrinco, pondo a nadadeira sobre o peito felpudo, em sinal de respeito. – daquele que roubou o sagrado Botão de Alerta.

- O totem que deveria estar seguro na Grande Floresta! – grasnou a antiga entidade, fazendo ressoar sua voz por todo o salão. – Como pôde permitir tal atrocidade?

O Ornitorrinco sabia que aquele era Danner, um antigo Moderador que já voara pelos céus de Cepetelândia caçando os banidos, mas que hoje vive no Templo da Convergência conectado diretamente aos servidores centrais da cidade. Ele se tornara o Oráculo, uma entidade capaz de identificar qualquer membro e sua localização exata no espaço e no tempo.

- Suspeitamos que o ladrão seja um banido que outrora foi frequentador da Grande Floresta e profundo conhecedor do condado da Seção 8 – continuou o Ornitorrinco, procurando não demonstrar seu terror diante da cólera da criatura – daí sua facilidade em concretizar o delito. De alguma forma, ele está enviando um sinal para a grande rede e usando o Botão de Alerta para nos atacar.

- O senhor pode reverter esse alerta negativo? – Gritou o Vampiro, de dentro do barril.

- Não sem que o totem esteja em seu santuário na Grande Floresta – respondeu o Moderador, em tom mais ameno – os algorítimos que reduzem o nível de alerta estão em processos encapsulados dentro do código-fonte, que precisa estar conectado à rede.

- Então nos ajude a localizar o ladrão e colocaremos o totem em seu lugar! – Disse o Lobo levemente exacerbado, tomado pela angústia de ver sua musa com a nefasta tornozeleira vermelha.

O ancião, finalmente, parou de escrever com a pena. Colocou-a de lado e, com um toque, fez surgir na tela um teclado virtual que era composto não de letras, mas de símbolos místicos relacionados a comandos de programação. Seus dedos começaram a digitar nas teclas virtuais numa velocidade indescritível, era quase impossível acompanhar os movimentos com os olhos. A cada toque, as inscrições cunhados na pedra brilhavam em linhas de energia esverdeadas, que serpenteavam pelos sulcos dos símbolos em baixo relevo. Na grande nave, todos estavam em silêncio, o único som que se ouvia era o dos toques rápidos dos velhos dedos na tela cristalina. Vários minutos se passaram, até que, finalmente, o ancião parou.

- Encontrei – disse ele, tomando novamente a pena e voltando a escrever calmamente na tela, sem nunca levantar os olhos. – De fato, o responsável é um banido. Ele usou múltiplas camadas de IP para disfarçar sua entrada, além de contas fake sobrepostas.

- Um fake convidado por outro fake – disse a Raposa, compreendendo o ardil.

- Enfim, quem é o meliante? – Perguntou o Lobo, indócil. – Onde ele está?

- Ele está onde sempre esteve: no Limbo – respondeu o Moderador – de lá ele está enviando o sinal para nossa rede utilizando os códigos de acesso inerentes ao Botão de Alerta. Ele está depurando o algoritmo, logo será capaz de modificá-lo e aplicar qualquer quantidade de alerta em qualquer membro.

- Quem é ele? – Perguntou com firmeza o Ornitorrinco.

- Ora, vocês o conhecem bem. – Disse o Moderador, impassível. – O senhor da prolixidade. O Falso Profeta. O Caçador dos Céus.

Uma expressão de espanto tomou o rosto de todos os guardiões. O barril no chão começou a tremer freneticamente. Mesmo a Raposa, a criatura mais otimista do reino, não pôde esconder seu espanto e preocupação. O Ornitorrinco disse em voz alta, sem se dirigir a ninguém especificamente:

- Skyhunter!

- Exatamente – disse o Moderador, enquanto escrevia códigos ininteligíveis com sua pena. – Vocês devem detê-lo antes que ele domine o código-fonte do Botão de Alerta. Deverão descer ao Limbo, derrotá-lo e trazer o totem de volta.

- Como chegaremos ao Limbo? - Perguntou o Homem de Costas, muito avexado e retraído.

O Moderador riscou algumas instruções na tela e, de repente, pôde-se ouvir o som de grandes engrenagens funcionando sob o chão do templo. Logo o centro do salão se abriu, revelando uma escada em espiral que descia para as profundezas.

- Vocês devem ir aos Senhores do Abismo. – Disse o ancião – eles guardam a entrada para o Limbo.

- Nós derrotaremos Skyhunter e voltaremos com o Botão de Alerta – disse o Ornitorrinco, dirigindo-se com seus companheiros para a entrada do reino subterrâneo.

- Se vocês não o fizerem, não voltarão – disse o velho Moderador, sem se virar.

O Ornitorrinco olhou em silêncio para o ancião antes de começar a descida. Certamente, o Oráculo sabia que se Skyhunter dominasse o algoritmo do Botão de Alerta, até mesmo o prestigioso círculo da moderação estaria em apuros. Seria o fim da cidade. Os heróis iniciaram a descida para o escuro fosso a fim de encontrar os Senhores do Abismo, os mais temidos Moderadores de toda Cepetelândia, e rezar para que lhes fosse concedida a passagem para a terrível dimensão do Limbo.

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