O fato sobre o qual escrevo a seguir ocorreu há duas semanas, no dia 24/05. Esperei esse tempo porque quando se escreve com o coração pesado a escolha das palavras torna-se mais difícil: ora é demasiado melancólica, ora é simplesmente imprecisa. O texto será, inevitavelmente, triste. Lúgubre até. É árduo escrever sobre a morte, não há nada de piegas nisso. Já que estou disposto a escrever prometo que me esmerarei para que o leitor não seja apenas o espectador de um sepultamento, mas que pegue na enxada junto comigo e segure minhas mãos sujas de terra.
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Quando acordei às 7 horas de domingo após ter dormido pouquíssimo já sabia o que tinha de fazer: iria abrir uma cova e enterrar meu cachorro que morrera há menos de 12 horas numa clínica veterinária próxima à casa da também falecida D. Nazaré, avó de Danielle, no Barata. O veterinário comprometeu-se a trazer o bicho lá pela hora do almoço, o que me dava tempo suficiente para adiantar a primeira parte da tarefa.
Tomei o café da manhã costumeiro, banana, cereais e leite, peguei a enxada que deixara pronta de véspera, montei na bicicleta e fui para o nosso terreno na rua Manaus. Danielle dormia e não me ouviu sair.
Decidi cavar nos fundos do terreno, onde sabia que o mato crescia menos e tinha uma vegetação rasteira que era até simpática. Optei pelo lado esquerdo, oposto ao muro da casa vizinha. A única experiência válida que eu tinha sobre como se abrir uma cova foi assistir a dois enterros, dos meus avós, há alguns anos atrás. Lembro-me que o coveiro devia ter uns 50 anos e abriu com certa facilidade um buraco grande o suficiente para descer o esquife. Confortado com essa lembrança lancei o primeiro golpe na terra, esperançoso de que a tarefa afinal não fosse tão penosa, apenas para ter o cabo da enxada quebrado logo nessa primeira investida. Olhei em volta furioso, a ferramenta inútil jogada no chão, buscando uma solução rápida para o problema: alguém tinha de me emprestar uma enxada e logo.
A salvação foi o Braga, o sujeito que construiu minha casa e é incapaz de negar um favor a quem quer que seja. Emprestou-me de bom grado a enxada, dando-me os pêsames pelo passamento do Saci enquanto martelava a peça de metal contra o cabo de madeira, deixando as peças bem firmes.
De volta ao terreno finalmente a cova começou a tomar forma, mas o trabalho foi muitíssimo pior do que eu esperava: cavar um buraco era uma tarefa muito, muito difícil. Mesmo com um porte físico médio – não sou nenhum fracote – descobri que descolar nacos de terra do solo duro era um serviço lento e cansativo, o que acabou concretizando o pior dos meus temores: eu comecei a pensar enquanto cavava.
Impossível não se lembrar dos momentos que passamos com o bichinho desde que o pegamos na rua com a pata machucada, em 2001. Foi indubitavelmente o melhor cachorro que já tive: sempre alegre, carinhoso, sorridente, não havia quem não gostasse dele. A covinha tinha de ser do tamanho certo, não iria colocar o bicho todo dobrado ali dentro. O suor escorria pesado e em grande quantidade pela testa e pelo nariz, colava a camisa nas costas e no peito, mas não importava, ele merecia, ia ter o seu jazigo do tamanho adequado. Doeu-me muito sobrepor a imagem do animal vivo sobre o buraco, para medir o tamanho e a profundidade, senti o peito apertado.
Ele adorava subir nas coisas, tinha horror a ficar no chão, meus amigos o apelidavam de “cat dog” ou “bird dog”, pois só vivia empoleirado em cima das cadeiras e até mesmo da máquina de lavar. Sempre perto, onde quer que estivéssemos, andava atrás de nós pela casa toda. E ainda agora ficaria por perto. O veterinário tinha um amigo que supostamente iria cremá-lo na Rural, mas quem garante que o sujeito não o jogaria na primeira lixeira que encontrasse? Não, ele ficaria aqui no nosso terreno, o mais próximo que consegui da nossa casa, numa sepultura digna da amizade que dividiu conosco por quase 10 anos.
A enxada batia nas pedras, tive de me agachar algumas vezes para arrancar pedregulhos que impediam o progresso do trabalho. Quase pronto, um pouco mais fundo, pensei. A idéia de que a cova ficasse rasa demais me apavorava, lembro-me de que isso me passou pela cabeça enquanto minha avó era enterrada, achei que o buraco estava raso, mas era impossível falar qualquer coisa a respeito. “- Sr. coveiro, o senhor pode fazer a gentileza de cavar mais fundo para que eu tenha a certeza de que os urubus não vão banquetear a minha avozinha?”. Se a velha estivesse viva cairia na gargalhada.
Pronto. Dei uma última olhada e fiquei satisfeito com o resultado, não fosse o tempo que levara para cavar, diria que fora um trabalho perfeito. Lavei o rosto e os braços na biquinha próxima ao portão, devolvendo ao solo o tanto de terra que ficara colado na minha pele. Deixei a enxada recostada no muro próximo à cova, saí e tranquei o portão.
Era domingo, um peixe cairia bem para o almoço, ainda havia tempo de conseguir um exemplar fresco. Fui com a bicicleta até a barraca próxima ao Guanabara e comprei uma corvina de tamanho médio. Voltei para casa e temperei o peixe, aguardando o telefonema do veterinário que não tardou a vir. Quando pus a corvina na geladeira não pude deixar de dissociar desse o ato de se colocar um cadáver num freezer de necrotério. A cabeça estava cheia de idéias tristes e mórbidas.
Marquei com o veterinário próximo ao quartel da ESIE e de lá fomos para o terreno na rua Manaus. Ele me entregou o corpinho dentro de um saco verde, desses usados para se colocar lixo. O rabinho dele apareceu e foi como uma apunhalada no coração. Engoli seco e agradeci o veterinário pelo empenho em tentar salvar meu amigo. Ele retribuiu com um aperto de mão e disse que estávamos quites, eu não lhe devia nada. Estavam de óculos escuros, o veterinário e sua companheira, que não fez questão de sair do carro nem de me dar bom dia. Partiram em direção à Avenida Brasil, para curtir em algum lugar aquele bonito domingo de sol.
Fiquei muito satisfeito ao ver que a cova correspondia ao tamanho do animal. O saco verde-oliva drapejava e eu pus a mão espalmada na lateral do bicho para ter a certeza de que não havia sinal de respiração. Só então me despedi e puxei a terra por cima, trabalho que concluí em menos de 5 minutos. Compactei o solo com a enxada e fiquei alguns instantes observando. Pensei em fazer uma cruz para marcar o local, mas lembrei-me de que o cachorro não era cristão, pelo menos se era nunca tinha me contado, e resolvi circundar com pedras a pequena sepultura, obtendo um razoável resultado estético. Lavei o rosto deixando propositalmente que um pouco de água umedecesse minha boca, peguei a enxada do Braga e dei uma última olhada para trás. Nosso terreno era, agora, um cemitério. Saí, tranquei o portão dando duas voltas na chave e voltei para casa.
Eu e Danielle nos abraçamos muito e choramos. Cuidamos do bicho até o final, proporcionamos-lhe a melhor vida e o melhor enterro que pudemos. Estava na hora do almoço, era hora de assar aquele peixe. Peguei uma assadeira e já ia transferir para ali a corvina quando vi que ainda havia terra sob minhas unhas. Antes de lavar mais uma vez as mãos, olhei para a terra e para o peixe. Então olhei para o lado, para a cadeira de plástico sob a qual o bichinho gostava de dormir e senti mais uma vez o peito apertar. Isso vai demorar a passar, esse aperto. Os olhos mortos do peixe, sem brilho, não refletiam nada. A terra debaixo das unhas correu para o esgoto com a água fria da torneira. Na terra, no peixe e no peito somente a morte e o desalento.