domingo, 10 de outubro de 2010

A Raposa, o Lobo, o Ornitorrinco, e o roubo do botão de Alerta - Capítulo I

CRÔNICAS DO CPTURBO

A Raposa, o Lobo, o Ornitorrinco, e o roubo do botão de Alerta

Uma fábula em um prelúdio, quatro capítulos e um epílogo

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:::: CAPÍTULO I: A Cor Cinza

O Ornitorrinco jazia no lodo, os olhos diminutos semicerrados fitavam o céu por entre as copas das árvores. Era fim de tarde na Grande Floresta. No céu, no espaço, ainda brilhava o colossal processador com incontáveis núcleos i7, um astro flamejante que iluminava e aquecia Cepetelândia desde o princípio dos tempos. A gigantesca estrela imergia no horizonte, o ornitorrinco a seguia contemplativo. Somente os nativos da floresta poderiam descrever o espetáculo do ocaso visto do meio da mata, os raios digitais atravessando as nuvens à meia-luz, o céu rajado em todas as cores, como se um enorme DVD-R pairasse no firmamento, a superfície gravável voltada para baixo. Circunspecto, em silêncio, ele aguardava a chegada da noite, quando a Seção 8 ganhava vida e a floresta era visitada por cepetelenses de todos os condados.

A alguns metros do charco, numa pequena elevação do terreno, o Vampiro que Treme esperava ansioso diante de uma poça de água cristalina. Vestido com seu casaco vermelho-sangue de gola alta, ele olhava para a água procurando inutilmente por seu reflexo. Quase nenhuma luz no céu. O Lobo surgiu dentre as árvores, caminhando lentamente pela vegetação rasteira. Acomodou-se diante da água, em esfinge, as orelhas levantadas, as patas estendidas para frente.

- Vem jogar com a gente hoje?

O ornitorrinco não se moveu, as costas deliciosamente mergulhadas na lama.

- Não, Lobo, logo a Ninfa enviará os alertas, muito trabalho para essa noite.

O Vampiro sentou-se na relva diante da pequena poça. O Lobo tocou a superfície com a pata, criando pequenas ondas circulares. Imediatamente, fez-se a conexão com a rede e, no espelho d’água, surgiu a tela do Firefox já com o pôquer online como página principal. Na mesa virtual logo surgiram os coordenadores dos outros condados, ansiosos para o jogo. A poça d’água – na verdade cristal líquido de alta definição – iluminava suavemente as árvores ao redor e as faces do Vampiro e do Lobo.

A noite chegara à Grande Floresta. De cima, viam-se as torrentes de informação serpenteando entre as árvores, em raios luminosos. Os gêiseres de conteúdo refletiam brandamente essas luzes, enquanto flashes de novas conexões eram deflagrados por toda a mata densa, os membros conectando-se à grande rede de Cepetelândia. Era noite. O condado da Seção 8 recebia os cidadãos de toda a cidade, ávidos por compartilhar o conteúdo que emanava da mata e regozijar-se com seus irmãos e irmãs. Era noite, e a vida fervilhava no sul da cidade perdida.

O ornitorrinco virou-se e saiu do charco, subindo pela pequena encosta. Sentou-se diante de uma pedra e levantou seu tampo, revelando uma tela led 3D conectada à grande rede. Com a nadadeira começou a mover os elementos na tela touchscreen, abriu o Messenger, conferiu seus e-mails e navegou até o painel de alertas. Zero. A Ninfa de Cachinhos Dourados não alertara tópico algum.

- Nenhum alerta, orni, tudo muito tranquilo, não?

Era a Raposa, que chegara silenciosamente e havia se sentado ao lado do ornitorrinco. Na verdade, a Raposa nem precisava acessar a Central de Alertas, um de seus poderes mágicos era enxergar os dados de toda a rede apenas olhando para os cabos e dutos de fibra ótica. A Raposa sabia de tudo, e tudo ao mesmo tempo, o que era uma bênção e uma maldição, já que precisava controlar a neurastenia com Lexotan, Prozac e Gardenal em altas doses.

- Algo está errado, Raposa – disse o Ornitorrinco, enquanto passava as páginas agilmente com a nadadeira. – Veja, só hoje foram criados 70 tópicos! Como não há alertas? Nenhum tópico incompleto, nada postado no lugar errado, nem sequer uma troca de ofensas?

- Onde está Cachinhos Dourados? – Disse a Raposa, conectando seu smartphone.

- De acordo com o GPS sobrevoando o distrito 8.1. Espere! Chegou uma MP.

O Ornitorrinco tocou o ícone correspondente e saltou, em 3D, uma pequena caixa de texto onde se lia: “Não é possível alertar, o ícone não está disponível! O que está acontecendo, há algum erro na interface? Preciso de ajuda urgentemente!”

- O que pode ser isso, Raposa? Raposa?

Era tarde. A Raposa já estava vidrada em seu smartphone, vendo as novas fotos de sua musa, a Mulher Código de Barras, uma humana que roubou o coração do jovem coordenador há muitos anos, uma longa história. Nada o tiraria dali; era até mesmo perigoso tentar.

- Lobo, Vampiro, vamos! – Disse o Ornitorrinco, movendo-se até a cacimba. – Cachinhos está em apuros. Onde está o Homem de Costas?

- Vagando pela mata – disse o Lobo, tocando a água e encerrado o jogo de pôquer. – Procriando, eu acho.

- Muito bem, estou enviando MP para ele nos encontrar no distrito 8.1 – ele fechou o tampo da rocha colocando-a em standby. – Rápido! Alguma coisa não está certa.

As criaturas mágicas dispararam pelo meio da mata, em direção ao distrito 8.1, uma área livre onde todo assunto podia ser discutido, o que sempre gerava problemas com aqueles que não sabiam lidar com a liberdade de expressão. O Vampiro pulava pelas copas das árvores, em pequenos voos, o lobo corria velozmente saltando sobre pedras e arbustos. O Ornitorrinco disparava pela mata baixa, alternando freneticamente as nadadeiras em velocidade supersônica. Em pouco tempo, chegaram à zona livre.

Na grande clareira, centenas de membros trocavam informações ruidosamente. Alguns se sentavam ao redor de fogueiras e interpretavam piadas de gosto duvidoso, outros discutiam temas sem importância, deitados na relva, passando o tempo. Logo avistaram a Ninfa, que vinha voando furiosa vestida com seu micro-biquíni dourado, atraindo olhares por onde passava. Ela pousou diante dos coordenadores irritadíssima.

- Eu não posso alertar! Vejam! – Ela mostrou sua varinha de condão, que não tinha uma estrela na posta, mas um pequeno ponto de exclamação. O ponto, que deveria brilhar em áurea luz, estava cinza-claro, desativado. – Tem um tópico de discussão de futebol logo ali, mais adiante uma piada pornográfica. Aquele idiota perto do arbusto de framboesas abriu um tópico com fotos minhas em poses sensuais sem minha permissão! – A Ninfa segurou o rosto com as mãos e começou a soluçar num choro humilhado. Tomado pela cólera, o Lobo olhou para o Ornitorrinco, que disse:

- Ao trabalho. Hora de limpar a seção. Dorga! Onde está o Homem de Costas? – Gritou, olhando para o Vampiro, que puxou um headset do casaco e tentou uma conexão via Skype.

- Hã? Certo... entendo. Senhor! Ele está terrivelmente envergonhado por suas ações dessa tarde, não quer vir ajudar. Está preocupado com as pensões alimentícias e...

- Ok, esqueça – disse o Ornitorrinco balançando a cabeça. – Vamos dar um jeito no meliante. 30% de alerta mais uma semana de suspensão. Lobo, vá na frente e faça as honras.

O Lobo sorriu sadicamente, os olhos luziam em vermelho-brasa. Entre seus poderes místicos estava o feixe escarlate, um poderoso raio disparado pelos olhos que aumentava dramaticamente o nível de alerta dos usuários. Se mal aplicado, poderia marcar imediatamente o membro para o banimento. Louco para vingar a ofensa sofrida por Cachinhos, sua paixão platônica desde que era um pequenino filhote, o Lobo avançou firme em direção ao delinquente, seguido pelos outros dois guardiões. Sem saída, o usuário problemático fechou os olhos, esperando ser atingido em cheio pelo lendário feixe escarlate.

Entretanto, algo inesperado aconteceu. O Lobo firmou as partas dianteiras, o pêlo ouriçado, o rabo em riste. Num rosnado, disparou dos olhos o raio mágico que, para o espanto de todos, não tinha a viva cor vermelha do rubi, mas cinza-claro, como a varinha da Ninfa. O outrora poderoso feixe escarlate atingiu o meliante num impotente raio acinzentado, sem efeito algum. Surpreso, o membro riu e zombou:

- Quem diria! O temido Lobo não pôde aumentar meu nível de alerta! – O usuário subiu numa pedra e gritou: – Ouçam! Os guardiões não podem alertar! Podemos publicar qualquer coisa! – Muitos se aproximaram e fizeram um círculo em torno do agitador e dos coordenadores. – Vejam! Eu postei fotos da Ninfa, nada aconteceu e...

- Eu pararia por aí! – Interrompeu bruscamente o Ornitorrinco. – Você está a um passo de ser banido.

- O que vai fazer, pato? Disparar raios cinzas em mim? Ou vai...

Ouviu-se um sibilo, como o desembainhar rápido de uma espada, um arco de luz se desenhou no ar. Silêncio. Riscada em diagonal, do abdômen à testa do incauto usuário, estava a luminosa marca da caneta do supervisor, que o Ornitorrinco segurava estendida no ar. 60% de alerta, de uma só vez, a marca do banimento. O pobre diabo começou a correr pela clareira, todos se afastavam dele. Tropeçava nas fogueiras, rolava pela relva, levantava e caia de novo. De repente, ouviu-se no céu o som da criatura alada, atraída pela marca do banimento. O usuário gritava, chorava, mas era tarde, ele já fora visto: um moderador sobrevoava a floresta, iluminando a noite em terríveis luzes esverdeadas. Era o Carioca Marrento, um dos seis seres arcanos que protegiam Cepetelândia. Todos os usuários se afastaram do membro amaldiçoado, deixando-o só no meio da clareira. O ente verde-esmeralda apontou-lhe a mão espalmada, a energia ban concentrou-se numa esfera luminosa, pronta para ser disparada.

- Ih! Já era, perdeu prayboy! – crocitou o Carioca Marrento, tentando evitar palavras com a letra “s”. O disparo do raio esmeralda iluminou a escura floresta, desintegrando o membro numa explosão de bytes incandescentes, enviando sua alma para o limbo dos banidos. O poderoso moderador se afastou, devolvendo à noite a escuridão. Os membros, como sempre acontecia quando alguém era banido, ficariam mais cuidados para o resto da noite. Os autores de tópicos impróprios rapidamente mudaram seu conteúdo e os mais exaltados correram para editar seus posts.

- O que está acontecendo? – Disse o Lobo, ainda incrédulo – Nossos poderes de alerta estão desativados!

- Fale mais baixo – disse o Vampiro, trêmulo, colocando a mão nas costas do Lobo – ninguém pode saber disso, ou teremos sérios problemas.

A Ninfa, ainda agitada com toda a ação, voou até o Ornitorrinco, que observava os restos do corpo digital do membro espalhados pelo chão. Ela pousou e caminhou até seu lado, dizendo:

- Se nossos poderes de Alerta estão desativados, como você conseguiu marcá-lo para o banimento? – O ornitorrinco olhou para a Ninfa, mas não foi ele quem respondeu. Uma voz grave e segura, a alguns metros, disse:

- A caneta do supervisor não está conectada ao Sistema Central de Alerta. É um artefato místico, autônomo, que não foi afetado pelo roubo.

Todos se voltaram e avistaram o grande símio. O gorila branco, que um dia já fora guardião da Grande Floresta, estava de pé, próximo a eles, fumando seu inconfundível cachimbo curvo.

- Sherlock! – Gritou o Ornitorrinco, guardando a poderosa caneta em meio aos pêlos abdominais.

- Roubo? Do que você está falando? – Arguiu o Lobo, ainda irritado.

- Elementar, meu caro lupino. – Sherlock ajeitou seu pequeno chapéu com a ponta dos dedos – O Botão de Alerta foi roubado.

Atônitos, chocados, os guardiões se entreolharam, em silêncio. Em seguida, olharam ao redor, para sua amada floresta. Os usuários tinham voltado a sua rotina, alheios ao que se passava. Se o que Sherlock dissera fosse verdade, aquilo poderia significar o fim de tudo.