Eu tenho certeza de que o leitor conhece pelo menos uma pessoa que se orgulhe de não saber nada de informática. “- Word? Para quê, se minha máquina de escrever funciona tão bem!”, “- E-mail? Prefiro enviar correspondência”, “Pagamento online? Jamais! Melhor enfrentar a fila do banco”. São felizes em sua ignorância digital, iluminando com tochas o caminho de terra batida enquanto outros singram um caudaloso rio de bits em caravelas que viajam à velocidade da luz. Não devo questionar suas escolhas, cada um sabe o que é melhor para si: não adianta obrigar sua avó a procurar receitas na Internet se ela tem todas muito bem anotadas naquele velho caderninho de espiral, já com folhas amareladas. Não duvide: aquelas páginas manchadas certamente estão mais bem redigidas e organizadas do que a maioria dos textos da Wikipédia. Apesar disso, do direito constitucional de não querer saber de informática, novas e admiráveis situações provam o quanto tais pessoas sofrerão, ainda nessa vida, por não entender o mistério por trás dos ícones coloridos e da setinha que corre pela tela.
Numa ordinária manhã de segunda-feira, notei a goteira no quarto vazio da casa. Aquela goteira é minha velha conhecida, sempre que chove ela drena vagarosamente a água que empoça sobre a laje desprotegida e deixa-a cair em gotas ritmadas. Só que não chovia, nem chovera no dia anterior. Montei a escada telescópica e subi, apavorado com a altura, até a laje nua. A enorme caixa d’água de dois mil litros de polietileno azul tinha um pequeno furo, próximo à base, de onde jorrava um pequeno filete de água, incessantemente, como o mijo de um recém-nascido.
Desci furioso. Aquela banheira custara quase R$ 400,00 em 2007 e não durou nem três anos. Liguei o micro, as mãos tremendo de raiva e frustração. No Google digitei o nome Fortlev e cliquei em Estou com Sorte, só para ironizar. Já no site do fabricante, cliquei no link Fale Conosco e em menos de trinta segundos já tinha em mãos o telefone de contato. Copiei-o e colei no bloco de notas, salvando o arquivo no meu desktop.
- Fortlev, bom dia, em que posso ajudá-lo?
- Bom dia, eu comprei uma caixa d’água dessa marca e... (explica, explica, explica) é isso.
- Tudo bem senhor, para enviarmos um técnico a sua residência, peço que o senhor tire algumas fotos da caixa d’água, pelo menos uma do local de instalação e outra do furo.
- Ok.
- Mande essas fotos por e-mail para o endereço (tal) e deixe seus dados para contato.
- Ok, vou resolver isso agora e ligo para confirmar se você recebeu a mensagem. Bom dia, até mais.
Peguei a câmera digital que sempre fica ao lado do micro, chequei o nível das pilhas e voltei para a laje. Tirei 16 fotos de vários ângulos para mostrar que a caixa d’água estava bem instalada, no momento de fotografar o furo, ativei o recurso macro da câmera para obter o máximo de detalhes. Desci rapidamente, tirei o cartão de memória da câmera e inseri-o no cardreader do micro. Copiei os arquivos para o desktop, selecionei as oito melhores fotos e reduzi o tamanho para 800x600. Anexei-as a uma mensagem de e-mail e enviei para o endereço indicado pela atendente. Esperei uns cinco minutos e liguei para a Fortlev: a mensagem havia chegado e já tinha sido encaminhada ao técnico da minha região. Entre o momento em que achei o furo na caixa d’água e o último contato telefônico que acionou o técnico passaram-se menos de 30 minutos.
O leitor talvez se questione sobre o porquê de se descrever em detalhes passos tão óbvios, mais ainda sobre por que despender tantas linhas para tratar de furos em caixas d’água. O amigo certamente está lendo esta crônica na tela do seu micro, enquanto aperta alt+tab para alternar entre esse texto e as janelas de conversas do MSN, não lhe é estranho nenhum dos passos descritos nos últimos parágrafos. Comemore! Celebre! Agradeça a Deus por ter esse precioso conhecimento, já que muitas pessoas não o têm e desprezam-no – aquelas mencionadas no início do texto, lembra? –, se elas estivessem na minha situação estariam em maus lençois.
O primeiro desafio do sujeito seria descobrir o telefone do fabricante da caixa d’água, já que este não está escrito na dita cuja. Ele tentaria procurá-lo nas telelistas, aqueles enormes livros amarelos que só servem para enfeitar a mesinha de telefone. Depois de perder um tempo enorme, ligaria para 102, onde a atendente o deixaria confuso informando números de várias filias através daquelas gravações de voz. Por último, ligaria para a loja onde comprou a caixa d’água (esse povo guarda nota de tudo, geralmente numa gavetinha do guarda-roupas) e com alguma sorte o gerente simpático lhe passaria o telefone. Então ele ligaria para a Fortlev e explicaria, num tom exacerbado, o problema do furo.
- Peço que o senhor tire fotos da caixa d’água e do furo para...
- Fotos? Como assim, vou ter que comprar um rolo de filme pra isso? Que absurdo!
- Não é preciso! O senhor não tem câmera digital?
- Meu filho tem, mas eu não sei usar aquela droga.
- O senhor pode usar a câmera do celular.
- Meu celular não tira foto, celular é pra falar, minha filha, não é pra tirar retrato.
- Compreendo, senhor, mas precisamos das fotos para acionar o técnico.
- Tá, tá, eu dou um jeito.
- Então o senhor deve enviar as fotos por e-mail para o endereço (tal) e...
- Eu não tenho e-mail. Não sei usar e-mail.
- Tem alguém que possa mandar pelo senhor?
O sujeito começa a ficar vermelho e suar.
- Minha filha, a caixa d’água é MINHA. Quem tem que resolver sou eu! Que absurdo! Eu posso mandar pelo correio?
- Não, senhor, só por e-mail.
Terão se passado 50 minutos antes que o sujeito se conforme e desligue o telefone. Ele se lembra dos velhos tempos em que bastaria ir ao bazar onde comprou a caixa d’água, pagar uma cachaça para o atendente e ter o produto trocado. Mesmo se soubesse usar a câmera digital, tomaria uma surra para passar as fotos para o micro e outra para enviá-las por e-mail, já que a câmera provavelmente estaria configurada na resolução máxima e os arquivos ficariam grandes demais.
Quanto tempo esse autodenominado "feliz ignorante digital" levaria para resolver o seu problema? Certamente mais do que meus 30 minutos.
Todo aquele que se diz bem resolvido nessa ferrenha aversão à informática vive numa utopia em que computadores e gadgets não fazem parte dia-a-dia. Enganam-se constantemente, são levianos, fingindo que é mais prático enfrentar 40 minutos de fila num banco do que pagar a conta online, que é melhor ir às caríssimas lojas de DVD do que fazer uma rápida consulta no Buscapé, que é mais eficiente reunir dezenas de pessoas num lugar e horário determinados do que discutir o assunto num fórum.
Afirmam que é difícil. Que a informática é difícil. Ora, eu sou da época do DOS 6.0 e da digitação no Wordstar 5.0! Aquilo era difícil. Para se tornar um usuário padrão, capaz de ligar o micro, digitar no Word, pesquisar no Google e enviar um e-mail, não há segredos que levem mais de uma ou duas semanas de estudo para serem desvendados. O que há aqui são a velha preguiça e o conformismo: é mais prático maldizer a tecnologia do que sentar o rabo ao micro e praticar. De maneira geral, essas pessoas fazem o mesmo quando o assunto é ter uma alimentação mais saudável ou praticar exercícios físicos. Sempre terão uma boa desculpa.
Uma coisa, no entanto, é certa: o seu tempo está contado. A aurora digital irrompe sobre o planeta, esconder-se de seu brilho, em breve, não será possível. Está próximo o dia em que a vida ficará realmente muito difícil para aqueles que não se enquadrarem nessa nova ordem digital, quando não será mais possível afirmar ser feliz, pois a maior parte do mundo estará inacessível para eles; nenhuma desculpa justificará viver pela metade. E sem caixa d’água.